Aproximações entre o Ma (間) e a fotografia contemplativa: Fotografar como um enquanto
Approaches between Ma (間) and contemplative photography: Photographing as a while

Por Yuri Bittar* - 01/07/2024


Fotografia Contemplativa (Fotografia: Yuri Bittar, 2024)

Resumo: Este artigo explora o conceito japonês de Ma (間), entre, espaço ou intervalo, refletindo sobre sua aplicação à fotografia contemplativa, uma forma de meditação visual, onde se busca capturar o momento sem preconceitos ou expectativas, permitindo um olhar atento e consciente. Nesse contexto o Ma demonstra a importância do espaço e da pausa para que a experiência aconteça. Assim a fotografia é proposta não como um ato final, mas como um enquanto, um processo contínuo de contemplação e descoberta.

Abstract: This article explores the Japanese concept of Ma (間), between, space or interval, reflecting on its application to contemplative photography, a form of visual meditation, where one seeks to capture the moment without prejudice or expectations, allowing an attentive and conscious look. In this context, Ma demonstrates the importance of space and pause for the experience to happen. Thus, photography is proposed not as a final act, but as a while, a continuous process of contemplation and discovery.

O Ma (間 = enquanto) 

A palavra japonesa Ma (間) tem diversos significados, tais como, “entre-espaço”, “espaço intermediário”, “intervalo”. A expressão Ma, na verdade, não deve ser entendida como um conceito, mas sim como um “senso comum peculiar dos japoneses: todos sabem o que é, mas não conseguem explicar com exatidão” (Okano, 2014, p.150). Usarei aqui, preferencialmente, uma das traduções possíveis: 

“enquanto”.

Ouvi esse termo, Ma, algumas vezes anteriormente, mas apenas recentemente parei para tentar entendê-lo realmente, e me deparei com diversos conceitos que podem, desconfio, dialogar com a fotografia contemplativa. Mais do que dialogar, talvez o Ma possa até mesmo ajudar a enriquecer o entendimento da fotografia contemplativa. Este artigo é, portanto, uma primeira aproximação entre a ideia de Ma e o olhar contemplativo, sem pretensão de ser definitivo, e pelo contrário, pretendemos levantar pontos a serem explorados posteriormente. 

A fotografia contemplativa

A fotografia contemplativa pode ser entendida como um tipo de meditação, que através do olhar busca desenvolver a percepção, a atenção ao momento presente, a descoberta das sutilezas da paisagem visual, contribuindo para uma conexão com a riqueza e a experiência do comum. 

Usada dentro de um programa, pode ser considerada ainda como uma prática de mindfulness, e assim podemos entender essa prática como um exercício intencional de permanência no presente, de treino da "[...] consciência que emerge ao prestar atenção intencionalmente, no momento presente, e sem julgar o desenrolar da experiência momento a momento" (KABATZINN, 2003, p.143).

A fotografia contemplativa propõe um treinamento que une fotografia e meditação “para treinar olho e mente através da observação cuidadosa e da presença, buscando-se a percepção, a visão clara, em oposição ao conceito. É registrar o que se vê, se vendo livre de expectativas”. (KARR; WOOD, 2011, p. 179, tradução minha). A partir do flash, ou lampejo de percepção, o momento em que vemos algo, antes de conceitualizar o que vemos, busca-se perceber o que o estado contemplativo permite ver, estabilizar essa ligação com o momento, se aprofundar no olhar, e registrar uma imagem a partir desse estado da mente.

Espaço (空間 = céu + enquanto) 

No Ma o espaço é elemento essencial. O momento, o espaço entre, como uma pausa na fala, como prestar atenção, ouvir, olhar, olhar mais, cria justamente essa brecha para a percepção que a fotografia contemplativa também precisa para permitir o olhar mais profundo, a atenção ao agora. Não podemos perceber o momento sem a pausa, aqui entendida como espaço, momento. 

Na fotografia contemplativa o espaço é tratado também como um elemento visual, assim como as cores, formas e texturas. Nesse entendimento o espaço é algo visível, parte das composições que nossa inteligência do olhar percebe, elemento crucial do exercício de permanecer no momento. Além disso, o espaço é valorizado também enquanto tempo, como na pausa para olhar, “[...] uma  interrupção  natural  do  fluxo  de  conceitualizações  que, embora comum, normalmente não é valorizada.” (BITTAR; LIBERMAN, 2023, p.3).

Quando li que entre as casas japonesas, mesmo com terrenos pequenos e escassos, há quase sempre um vão, um pequeno espaço (Matsumoto, 2020). A princípio estranhei essa informação, pois me lembrava de ver as cenas de ruas residenciais no Japão com aquelas casinhas ou pequenos prédios sempre colados uns nos outros. Então fui no “google maps”, passeei por muitos bairros e observei diversos tipos de casas, e constatei que realmente, na maioria das ruas que observei, sempre havia um espaço entre as construções, às vezes insuficiente para passar uma pessoa, mas está lá. 

Composição com espaço
Série de três postagens no Instagram, onde tento começar a aplicar alguns destes conceitos na prática. O espaço entre as fotos representa o
Ma e as possibilidades do olhar contemplativo. Junho de 2023. (Fotografias: Yuri Bittar)

Segundo Matsumoto, esse pequeno espaço, uma manifestação do Ma, permite uma delimitação clara entre as propriedades, criando um respiro essencial entre as edificações, entre duas privacidades distintas, e é também uma margem, como um espaço em branco que valoriza e sustenta o objeto, que poderia ser a casa, uma fotografia, uma pintura ou uma moldura, mas composta de vazio. 

Na fotografia, o espaço pode ainda se manifestar como movimento e possibilidades. Existe o espaço em branco em torno das fotos, a margem, o “paspatur”, mas há também o espaço dentro das fotografias, áreas vazias que não precisam ser brancas, nem realmente vazias, mas que permitem respiro, deixam o olhar se movimentar, procurar elementos e sensações, favorecendo a harmonia por meio de um equilíbrio dinâmico. Para a professora Okano esse espaço pode criar uma estética do Ma, ao gerar uma espacialidade que sustenta e valoriza a figura (Okano, 2014, p.153). No Ma, é essa parte “vazia” que contém as possibilidades, de espaço, de preenchimento, de movimento, portanto é a parte do espaço que contém a vida. 

Na arte e na geometria ocidental costumamos, mentalmente, ligar dois objetos com uma linha. É o nosso senso comum. Mas imagine que o que conecta dois elementos visuais não seja uma linha, mas sim um espaço, em termos de área e de tempo. Trocando as linhas pelo espaço, surgem muito mais possibilidades, e a linha é apenas um desse múltiplos possíveis no entre, mas qualquer forma, movimento e tempo podem caber nesse espaço, ele é rico em possibilidades, infinito no tempo,  inclusive pode simplesmente não conter nada. 

Momento (時間 = tempo + Ma)

Tanto o Ma, como a fotografia contemplativa, nos mostram que o “momento” é esta brecha, dinâmica e em constante movimento, onde podemos perceber o mundo. A vida habita o momento, e apenas o momento. Mas sem espaço, soterrados pela pressa e ansiedade do estilo de vida atual, não temos tempo para a pausa necessária para perceber o momento. 

Se não temos o espaço, o tempo, não ficamos no momento, não apreciamos, sequer podemos tornar nosso olhar um instrumento da percepção, pois estamos sobrecarregados pela rotina, como se fossemos casas sem aquela margem entre, uma fotografia sem algum vazio, não podemos ter a experiência, pois nada realmente nos acontece, apenas passamos anestesiados pelo dia. E se é justamente da experiência, segundo Bondía, que deriva um saber “que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida” (BONDÍA, 2002, p. 27), não conseguimos ampliar nossa capacidade de viver. 

O momento (tempo + Ma), é vida. 

O Enquanto… por enquanto

Proponho entendermos, por enquanto, o ato de fotografar como um enquanto. Ou seja, uma grande mudança em relação à fotografia “tradicional”, pela qual normalmente vemos o clique como um finalmente, um ato de criação e de conclusão, quem sabe talentoso ou até genial. Se a fotografia ficar boa, algo está finalizado. 

Mas, se assumimos o ato de fotografar como um olhar enquanto, uma atitude sempre provisória, um movimento, a fotografia feita não é mais um final, mas um entre, entre momentos, entre acontecimentos. Este olhar, para acontecer, precisa de espaço. Enquanto olhamos e contemplamos, e antes de empunhar a câmera, abrimos espaço para o Ma, nele nos movimentamos e permitimos o novo, a experiência e a vida.

* Pesquisador no Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde – CeHFi/Unifesp. Doutor em Ciências pelo Programa Interdisciplinar em Ciências da Saúde - Unifesp Baixada Santista / Mestre pelo CEDESS/Unifesp - https://cehfi.unifesp.br .

Referências:

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Porto Alegre, n. 19, p. 2028, jan./fev./mar./abr. 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf . Acesso em: 16 abr. 2014.

BITTAR, Yuri. Fotografia Contemplativa - o que é? (artigo em site). 2023 ( https://fotografiacontemplativa.com.br/index.php/artigos-sobre-fotografia-contemplativa/fotografia-contemplativa-o-que-e

BITTAR, Yuri; LIBERMAN, Flávia. Retratos contemplativos, experiência, memória e criação: a fotografia contemplativa em uma experiência de formação em saúde. Quaestio - Revista de Estudos em Educação, Sorocaba, SP, v. 25, p. e023031, 2023. DOI: 10.22483/2177-5796.2023v25id5012. Disponível em: https://periodicos.uniso.br/quaestio/article/view/5012 . Acesso em: 25 jun. 2024.

KABATZINN, Jon. Mindfulnessbased interventions in context: past, present, and future. Clinical Psychology: Science and Practice, New York, v. 10, n. 2, p. 144–156, 2003. Disponível em: https://doi.org/10.1093/clipsy.bpg016 . Acesso em: 15 mar. 2023.

KARR, Andy e WOOD, Michael. The Practice of Contemplative Photography: Seeing the World with Fresh Eyes. Shambhala Publications, Boston, 2011.

MATSUMOTO, Kiyoshi. MA — The Japanese Concept of Space and Time. 2020. https://medium.com/@kiyoshimatsumoto/ma-the-japanese-concept-of-space-and-time-3330c83ded4c 

OKANO, Michiko. Ma – a estética do “entre”. Revista USP, São Paulo, Brasil, n. 100, p. 150–164, 2014. DOI: 10.11606/issn.2316-9036.v0i100p150-164. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/76178 . Acesso em: 25 jun. 2024.